domingo, maio 27, 2012

O MUDO FALANTE




ZERO HORA 7 de maio de 2012


Flávio Tavares, Jornalista e escritor. 


O que mais me inquieta na sucessão de falcatruas, subornos e outras obscenidades do tal Carlinhos Cachoeira não são os crimes em si, nem a avalanche com que se expandiram de Goiás pelo país afora, corrompendo governos e governadores. Nem me inquieta que, a partir da roubalheira do jogo do bicho e dos bingos, ele virasse respeitável “grão senhor”, adulado por políticos e parlamentares, ouvido pela maioria dos partidos. Ou (corolário de tudo isso) que ele e os asseclas formassem grandes empresas contempladas em milionárias obras governamentais.


Esse horror é “normal” no país. Em meio às migalhas do Bolsa-Família ou às radiosas dívidas do crediário, já nem ligamos para o grande crime. Basta a preocupação com o assalto de rua e a poluição ou a seca brutal agravada pelo desmatamento constante. Se a tristeza crescer, há o futebol e a felicidade de que a Copa será aqui, como raio de luz!


Na rapina do bando de Cachoeira, é inquietante ver o escudeiro que ele tem ao lado. O ministro da Justiça dos quatro primeiros anos do governo Lula da Silva é agora seu defensor absoluto. Não atua como advogado tratando das formalidades para evitar absurdos processuais, mas como avalista do que ele fez ou faz. Antes de ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos foi presidente nacional da OAB e, como tal, conquistou o respeito geral. Agora, na CPI do Congresso, acompanhou Cachoeira em tudo. Porte altaneiro (como se defendesse Cristo ou Tiradentes), ordenou que se calasse ou cochichou ao seu ouvido as poucas frases que o mafioso repetiu como boneco de ventríloquo.


O direito à defesa é inerente à Justiça e os advogados criminais estão habituados a defender bandidos. Mas como será um ex-ministro da Justiça defendendo a quem abusou do próprio Estado? A quem subornou, corrompeu e atingiu direitos fundamentais de milhões de pessoas, ludibriadas pela máfia e afetadas, também, pelo desvio de verbas para escolas e hospitais?


No emaranhado da corrupção generalizada, pode (por ética) um ex-ministro continuar a advogar, usando na defesa do crime o que aprendeu nas entranhas do poder? Pode um ex-ministro da Justiça (que, até 2006, comandou durante quatro anos a Polícia Federal) advogar para um notório mafioso investigado pela própria Polícia Federal?


Enfronhado, como ninguém, dos labirintos policiais, conhece ele seus meandros e fragilidades. E sobre isso irá construir a defesa. Assim, defenderá o crime pelo que aprendeu, conheceu e comandou como ministro no combate ao crime? Fará a defesa do criminoso sobre as mesmas falhas e fragilidades do sistema, no qual penetrou a fundo como ministro?


Quem será o autêntico? O ministro da Justiça de ontem, na gestão Lula da Silva, que nos protegia da bandidagem e tinha poder sobre a Polícia Federal? Ou o advogado de hoje, que cochicha em público aos ouvidos do mafioso, para tentar ludibriar o que a Polícia Federal constatou?


Pode-se fingir ontem e fingir ao contrário hoje? Ou – entre o crime e a lei – há só um lado e somos autênticos apenas em um deles? Ou tudo é teatro de rua, e a empulhação está em todos os cantos do poder? E, lá, nada é nada, não há ética nem pudor, e só interessa enganar em busca de milhões?


Nisso tudo (numa ilação paradoxal), lembrei-me do cardeal dom Vicente Scherer. O que seria dele se, após deixar o Arcebispado de Porto Alegre, se dedicasse ao oposto do que pregava e, a partir do que ouviu nas confissões dos fiéis, fosse dirigir um prostíbulo?


Seria ele a figura admirada e querida que é, pela abnegação com que reergueu a Santa Casa de Misericórdia para servir ao Rio Grande inteiro? Ou seria um mudo falante?

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