segunda-feira, maio 21, 2012

VÍCIOS PRIVADOS, VIRTUDES PÚBLICAS

O ESTADO DE SÃO PAULO, 21 de maio de 2012 | 3h 07
DENIS LERRER ROSENFIELD, PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS.
A Câmara dos Deputados vinha, nos últimos anos, perdendo progressivamente o seu 
protagonismo institucional, cedendo espaço ao Poder Executivo e ao Poder Judiciário. 
Estes Poderes, por sua vez, não hesitaram em preencher o espaço vazio, acentuando
um desequilíbrio propriamente político. Ademais, a Câmara e o Senado vinham se 
enredando em questiúnculas internas, boa parte das quais se traduzindo por disputas 
de cargos e pelas mais distintas formas de fisiologismo, se não de corrupção e desvio
de recursos públicos.

Nesse sentido, é alentador observar dois recentes movimentos que contrarrestam 
essa tendência: a CPI dita do Cachoeira, na verdade, também da empresa Delta e 
dos políticos e governantes por eles envolvidos; e a votação do novo Código Florestal,
com  a Câmara retomando o seu protagonismo, alterando o texto do Senado. 
No passado recente não focriada nenhuma CPI, quer por inação do Poder Legislativo,
quer por clara intromissão do Poder Executivo, temendo qualquer investigação.
 Há, aqui, uma novidade de monta que merece ser ressaltada.

Primeiro, a presidente Dilma não se opôs à criação da CPI, embora não fosse essa 
uma opção propriamente sua. Poderia ter jogado todo o seu poder para torná-la inviável
e não o fez, o que não deixa de ser uma posição propriamente institucional. Segundo,
presidente da Câmara agiu como magistrado, tendo sabido articular e compor as 
forças em presença. Aliás, vale enfatizar que o deputado Marco Maia, em sua carreira
política, não tem nada que o desabone moralmente, o que por si só, na conjuntura atual,
é digno de louvor.

O mundo em geral, e o da política em particular, não é um mundo de anjos. Cada partido
político, ao acolher a ideia de criação da CPI, agiu segundo seus interesses particulares,
acreditando acertar o seu concorrente ou adversário. O PT procura acertar o PSDB por 
meio do governador de Goiás, Marconi Perillo, que não cessa de se contradizer sobre 
suas ligações com o contraventor Carlos Cachoeira. O PSDB procura acertar o PT via 
Agnelo Queiroz, governador do Distrito Federal. Outros ou os mesmos protagonistas 
procuram acertar o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, do PMDB, cada vez 
mais enrolado em sua "amizade" com o dono da Delta, Fernando Cavendish. O blog
do Garotinho aproveita-se da situação para tornar públicas fotos extremamente 
constrangedoras para Cabral.

No meio de tudo isso, aparecem novos dados sobre essa empresa de construção,
cujos tentáculos se estendem por toda a administração pública nos níveis federal,
estadual e  municipal. Uma empresa que cresce vertiginosamente com contratos 
públicos, aproveitando-se de seus mais distintos contatos no Estado, produzindo 
uma espécie de milagre na produção de riqueza. De repente, tudo o que estava 
"escondido" surge  publicamente, pondo a Nação diante de fatos cuja dimensão não
era possível prever.

Independentemente dos interesses particulares em jogo, cada um visando a sua 
satisfação própria, muitos dos quais orientados por vícios privados, partidários, o 
resultado não deixa de ser alentador, pois a divulgação dos desmandos políticos e das 
obscuras relações de um contraventor com políticos e governantes, incluída uma grande 
empresa, exibe esse outro lado de um Brasil que reluta, politicamente, em se 
modernizar. O País é a sexta potência do mundo do ponto de vista de seu PIB, mas 
não pode ostentar, infelizmente, essa marca na moralização da vida pública.

Acontece que esses vícios privados, para utilizar uma expressão de Bernard de 
Mandeville, estão produzindo virtudes públicas, dentre as quais convém ressaltar a 
transparência enfim alcançada das investigações da Polícia Federal, do Ministério 
Público e da própria CPI. Não importa que haja ainda muito por fazer, com o trabalho 
dos deputados se realizando parcialmente em sigilo e em reuniões fechadas. 
Nada como o tempo para dar transparência a atos que relutam em vir a público.

O mais relevante reside em que os vícios privados se estão tornando virtudes públicas,
com o País fazendo uma parte de sua tão necessária faxina ética. O resultado da CPI,
por escusos que possam ter sido para alguns os seus motivos, vai muito além do que 
foi planejado por certos de seus autores, contribuindo decisivamente para a formação 
da opinião pública brasileira.

A reelaboração do projeto de lei do Código Florestal é outro exemplo de uma retomada
do protagonismo legislativo - no caso, da Câmara dos Deputados. Não podemos 
esquecer que o projeto ganhou nova dimensão e abrangência graças ao relatório do 
deputado Aldo Rebelo, indo em seguida para o Senado, onde foi reformulado a partir 
de um acordo suprapartidário, e voltando depois para a Câmara.

Houve um impasse, com alguns defendendo a simples aprovação do texto do Senado,
outros advogando por outra reformulação, na defesa dos pequenos agricultores, que 
não teriam condições de atender a todas as exigências de recomposição das áreas 
de proteção permanente (APPs). Os mal informados andam dizendo que foi uma 
reação do agronegócio, quando para este não faz a menor diferença a recomposição
 de APPs, pois suas áreas são grandes e não perderia com isso. O impacto é maior
 entre os agricultores familiares, os pequenos e médios produtores, para os quais 
alguns metros a mais ou a menos nas margens de rios fazem enorme diferença.

Os deputados foram sensíveis a essa escuta, com o presidente da Câmara se 
comprometendo a pôr o texto em votação, o que alguns mais radicais se recusavam
 a fazer. Terminou valendo o ponto de vista propriamente institucional de uma votação
 necessária, pois o País não pode mais continuar nessa insegurança. A Câmara dos
 Deputados soube, assim, se colocar como protagonista, contribuindo para melhorar 
a sua imagem perante a opinião pública. O Brasil está ganhando com isso.

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