terça-feira, abril 22, 2014

Câmara aprova Marco Civil assegurando neutralidade de rede

Usuário ganha com o texto do projeto de lei aprovado, que fortalece fundamentos essenciais ao desenvolvimento da internet no Brasil. Governo sofre derrota em uma de suas principais bandeiras: os data centers

Marcela Mattos, de Brasília
Sessão sobre a votação do Marco Civil da Internet, na Câmara dos Deputados em Brasília
Sessão sobre a votação do Marco Civil da Internet, na Câmara dos Deputados em Brasília (Gustavo Lima/Agência Câmara)
Após cinco anos de discussão pela sociedade e quase três pelo Congresso, o projeto de lei 2.126/11, batizado Marco Civil da Internet, foi aprovado em votação simbólica nesta terça-feira pela Câmara dos Deputados (confira no quadro abaixo os principais pontos). O texto — que estabelece direitos e deveres de cidadãos, provedores de acesso e de aplicações e também governo no ambiente virtual — segue agora para o Senado e, se aprovado, será finalmente encaminhado para a sanção da presidente Dilma Rousseff.
O usuário brasileiro de internet ganha com o texto aprovado pelos deputados. Foi assegurada a neutralidade de rede, um dos grande nós da disputa em torno do Marco Civil (e a regulamentação desse dispositivo dependerá de consulta prévia ao Comitê Gestor da Internet e à Anatel, e não de simples decreto do Executivo). Além disso, terminou derrotada a proposta governista que queria obrigar empresas estrangeiras que atuam no Brasil (caso de Facebook, Google e Netflix, entre muitas outras) a instalar data centers para guardar dados de usuários brasileiros. O Marco Civil proíbe ainda que provedores de conexão à rede (empresas como Oi, Vivo, GVT e NET) armazenem registros de navegação de usuário. Por fim, entre as grandes disposições, o projeto de lei ordena provedores de serviços web a excluir definitivamente dados do usuário quando este encerra sua conta. Dessa forma, ficam protegidos fundamentos essenciais ao florescimento contínuo da internet brasileira — como concorrência, inovação, competitividade —, ao mesmo tempo em que o usuário ganha maior proteção no ambiente virtual.
A neutralidade de rede obriga os provedores de conexão a tratar de maneira igual toda informação que trafega na rede, sendo proibidas distinções em razão do tipo, origem ou destino dos pacotes de dados. O princípio impede, por exemplo, que os donos da infraestrutura da rede privilegiem alguns serviços (seus ou de terceiros ou os que podem pagar mais) em detrimento de outros, minando a concorrência e a inovação com uma espécie de pedágio discriminatório. É a neutralidade, portanto, que pode assegurar que novos produtos briguem com gigantes digitais estabelecidos sem serem prejudicados na linha de largada. Com a neutralidade, o melhor tem a maior chance de vencer.
A retirada dos artigos que tratavam dos data centers representou uma grande derrota para o governo — mas uma vitória de igual dimensão para o Brasil. A ideia de obrigar empresas estrangeiras de internet que atuam no país a manter dados de usuários brasileiros em grandes servidores locais fora incorporada ao Marco Civil no fim de 2013. Foi, segundo o relator do projeto, o deputado Alessandro Molon (PT-RJ), uma exigência da presidente Dilma, que queria dar uma "resposta diplomática" à suspeita de espionagem de agências americanas a dados de empresas e cidadãos brasileiros. A proposta — que não encontra paralelo em nenhuma parte do mundo — foi duramente criticada por especialistas. Além de desconsiderar a infraestrutura planetária da web, não teria o resultado pretendido pelo Planalto: evitar a interceptação de dados privados pelos espiões. Um efeito colateral, contudo, era certo: o encarecimento de serviços locais.
A nova disposição sobre a guarda de dados de navegação do usuário é outro acerto do Marco Civil. O texto proíbe que provedores de conexão à internet armazenem registros que permitam saber quais sites foram acessados pelos usuários e quando. Hoje, os usuários podem escolher se circulam ou não pela web logados a sites como Google e Facebook, fornecendo informações de navegação a eles. Eles não têm a mesma escolha em relação aos provedores de conexão, daí a importância de estabelecer limites para o uso que essas empresas podem fazer dos registros de navegação dos seus clientes. A medida, portanto, é correta. (Continue a ler a reportagem)

O que vai muda com o Marco Civil da internet

 Como é hojeComo vai ficar
Neutralidade de rede

É estabelecida por uma resolução da Anatel, que pode ser facilmente revogada
Provedores de conexão à web (Oi, Vivo, Net etc.) deverão dar o mesmo tratamento a todos os pacotes de dados que trafegam pela rede, não importanto conteúdo, origem ou destino
Exclusão de dados do usuário por serviços webNão há norma disciplinando a questãoProvedores de serviços (Google, Facebook, Netflix etc.)
deverão excluir definitivamente dados do usuário quando este encerra sua conta
Responsabilidade por conteúdos publicadosProvedores de aplicações (Google, Facebook, Instagram etc.) podem ser responsabilizados civilmente por conteúdos publicados em seus serviços por terceirosOs provedores de aplicação só serão responsabilizados civilmente pelo conteúdo de terceiros se, após ordem judicial, se recusarem a retirar do ar o conteúdo em questão
Guarda de dados de conexãoAcordo entre o Comitê Gestor de Internet (CGI.br) e provedores de conexão à rede prevê a guarda de dados por três anosOs provedores de conexão deverão manter os registros de acesso do usuário por um ano
Guarda dos registros de navegação de usuáriosTanto os provedores de conexão (Oi, Vivo, GVT, Net) quanto os de aplicação (Google, Facebook, Netflix etc.) podem guardar registros de navegação pelo prazo de três anosOs provedores de conexão à internet serão proibidos de armazenar registros que permitam saber quais sites foram acessados pelos usuários e quando. Provedores de aplicação (Google, Facebook, Netflix etc.) podem guardar tais dados desde que não repassem as informações a terceiros
Novela A falta de acordo entre Molon e Eduardo Cunha, líder do PMDB na Câmara, atrasou a votação do Marco Civil por meses. Desde outubro de 2013, o projeto tramitava em regime de urgência, trancando a pauta de votações e impedindo a apreciação de outras matérias.
Entre as maiores disputas travadas em público e nos bastidores está a que se deu em torno da neutralidade. As empresas provedoras de acesso à rede, contrárias ao conceito, defendiam o direito à discriminação dos pacotes de dado, o que, segundo elas, permitiria a criação de novos produtos a preços diferentes: um pacote para quem "baixa" muitos arquivos, outro para quem apenas acessa e-mails, e assim por diante. Não conseguiram. Mas os opositores da neutralidade na Câmara conseguiram impor uma mudança nesse capítulo do projeto de lei.
Comandado por Eduardo Cunha — líder do PMDB na Casa, porta-voz do chamado "blocão", grupo parlamentar que ao mesmo tempo apoia e faz oposição ao governo, e "simpatizante" da causa das teles — o grupo promoveu uma alteração no artigo que trata da regulamentação da neutralidade. E a mudança foi positiva. Originalmente, o texto dizia que a regulamentação seria feita por decreto do presidente da República. Com a nova redação, a regulamentação dependerá de consulta prévia ao Comitê Gestor da Internet e à Anatel.
Depois de ceder na questão da neutralidade, o governo capitulou no capítulo dos data centers. Os dois passos abriram espaço para a votação. Entre as razões que levaram o governo a ceder, está o fato de que o Brasil receberá, nos próximos dias 23 e 24, o The Global Multistakeholder Meeting on the Future of Internet Governance (Encontro Multissetorial Global sobre o Futuro da Governança da Internet), que discutirá princípios de colaboração e regulação da rede em escala global. A avaliação é que a imagem do país sairia arranhada se o anfitrião do encontro tivesse fracassado na tarefa de aprovar legislação a respeito.
O Marco Civil começou a ganhar forma em 2009, com o objetivo de disciplinar o uso da rede, estabelecendo direitos e obrigações de seus atores. Em 2011, a versão final foi apresentada ao Legislativo e passou a ser discutida na Câmara. Representantes de empresas circularam pelos bastidores do poder tentando influenciar os rumos da discussão.
"Foram três anos de análise que permitiram que a gente chegasse a um texto melhor que o inicialmente apresentado. Ele foi aperfeiçoado por meio de audiências públicas e com contribuições de diversos setores", afirmou Molon, após a aprovação. "Essa é uma vitória principalmente do internauta, que passa a ter uma garantia que não tem hoje: a sua privacidade, a sua liberdade de expressão e também a neutralidade da rede." 


O texto aprovado na Câmara também traz disposições gerais sobre importância da rede e os direitos dos usuários. É o caso dos artigos que tratam da privacidade e liberdade de expressão. Apesar de terem despertado a atenção do mundo nos últimos meses, em especial após a divulgação das suspeitas de espionagem americana, esses temas já são contemplados na Constituição Federal. Não há novidade, portanto.

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