terça-feira, setembro 08, 2015

“Não tenho nada a dedurar” (diz M. Odebrecht)

Publicado por Luiz Flávio Gomes
Bem-vindos ao Diário Independente do nosso amável abismo chamado Brasil!
[No mundo da mafiocracia] “Uma mão lava a outra, até que surgiu a Lava-Jato para lavar as mãos sujas [de todos os capturados até aqui]” (Zuenir Ventura).
No tenho nada a dedurar diz M Odebrecht
1. Crise política (corrupção e antirrepublicanismo):
“Não tenho nada a dedurar” ou não quero (por deliberação própria) dedurar? São duas coisas bem diferentes.
Odebrecht diz que “não tem nada a dedurar”. Continua firme na primeira fase do gerenciamento de crises. A primeira reação (emotiva) é sempre negar qualquer envolvimento nosso naquilo que gerou danos a terceiros.
Com sua fala M. Odebrecht enaltece a lealdade. Por quê? Porque (embora presumido inocente) o conjunto de provas contra a Odebrecht (já) é bastante exuberante: a partir das delações premiadas já foram descobertas contas bancárias na Suíça, incontáveis confissões, provas documentais, acordos com o CADE que confirmam o cartel entre as empreiteiras etc. Se tudo isso ficar devidamente provado, M. Odebrecht vai ficar para a história como um dos maiores corruptores do país que deliberou não fazer delação para preservar os seus “valores” (isso, como disse Merval Pereira, é a “omertà” dos mafiosos).
A delação premiada é um instituto ético? O tema é muito polêmico. O juiz Sérgio Moro, em um artigo que escreveu sobre a Operação Mãos Limpas na Itália, fez o seguinte comentário: “(…) não se está traindo a pátria ou alguma espécie de “resistência francesa”; “um criminoso que confessa um crime e revela a participação de outros, embora movido por interesses próprios, colabora com a Justiça e com a aplicação das leis de um país. Se as leis forem justas e democráticas, não há como condenar moralmente a delação; é condenável nesse caso o silêncio” (citado por Merval Pereira, O Globo 2/9/15: 4).
Eugênio Bucci trouxe um forte argumento para legitimar a delação premiada: “Mesmo assim, há uma justificativa profunda para a delação premiada (desde que empregada sem abuso): ela quebra a falsa “ética” do crime (uma “ética” essencialmente antiética), que se resume à lealdade irracional entre bandidos [ela quebra, portanto, a lealdade entre os criminosos]. Essa lealdade se funda no medo, não na virtude. Não é por ser virtuoso que os criminosos não se delatam jamais – é por medo de morrer” [“A ética é a prática de refletir sobre o que vamos fazer o sobre os motivos pelos quais vamos fazê-los” – F. Savater].
“Os corruptos notórios que posam de heróis impolutos só porque “não entregam” ninguém não calam por virtude, mas por medo pusilânime. Nesse quadro, o que a “delação premiada” consegue fazer é dissolver essa “ética” do crime [essa lealdade]. Se o ladrão “leal” só é leal porque tem medo, nada mais ético do que levá-lo a colaborar com a Justiça democrática por uma motivação tão mesquinha quanto o medo: o interesse de ter a pena abrandada” (Época, 20/04/2015).
2. Nossas crises ao longo da História:
A tendência histórica à conciliação transformou o aparelho de Estado numa esfera onde os antigos vícios da gestão da coisa pública permaneceram petrificados. O entorno era modificado, mas a essência mantinha-se a mesma (Marco Antonio Villa,http://oglobo.globo.com/opiniao/o-velhoonovo-17364065#ixzz3kUXVeqMg). Nossa formação histórica constitui uma “herança maldita” da qual temos que nos livrar um dia.
3. Crise econômica e capitalismo selvagem:
“A ciência do País [por causa das dificuldades econômicas] vive pior crise em 20 anos” (Estadão 30/8/15: A21). Se se pode viver de superstições, mitologias, crenças metafísicas e misticismos, para quê ciência?
“Meu medo não é o Brasil virar Grécia, é virar uma grande Argentina” (Samuel Pessôa). Já são 60 anos de bobagens econômicas na Argentina: “los hermanos” teriam entrado no nosso horizonte de imitação? Deveríamos copiar a Coreia do Sul, não as nações com problemas profundos.
4. Crise social (desigualdades e suas consequências):
“A experiência do século XX, como mostra Piketty, é clara: pode haver reconcentração de renda e riqueza ainda que com alto crescimento. O desafio de reduzir a desigualdade exige mais que mero crescimento. Isso sempre foi verdade, mas com o avanço da tecnologia, deverá ser ainda mais verdade neste século XXI (André Lara Resende, http://oglobo.globo.com/economia/mais-pobres-são-os-mais-afetados-por-recessao-17354752#ixzz3kUiPirsT)”. Não basta crescimento econômico, temos que também fazer a redistribuição (tal como os escandinavos, que praticam um dos capitalismos mais distributivos do planeta).
5. Crise jurídica (ineficiência da Justiça – ausência do império da lei):
Quando as instituições jurídicas de controle (polícia, Justiça etc.) funcionam mal, isso incrementa a corrupção porque fica muito fácil instalar no aparelhamento do Estado um crime organizado de proporções incomensuráveis.
Quando as instituições jurídicas funcionam bem, revelam o quanto esse crime organizado se tornou poderoso e o quanto de danos geram para a população. A tarefa da Justiça é muito relevante, mas, ao mesmo tempo, ingrata: sempre nos causa preocupação (ou desconforto).
Quando funciona bem, escancara a podridão dos governos, do mundo empresarial, da sociedade, dos indivíduos. Quando funciona mal, se torna um estímulo para essa podridão. De qualquer modo, é preferível que funcione bem do que mal, porque nesse caso nos permite pelo menos refletir sobre a dimensão do problema e suas possíveis soluções.
6. Crise ética (sociedade pouco comprometida):
Do antropólogo Roberto DaMatta: “Ninguém aguenta mais assistir a uma peça na qual poucos atores honram seus papéis. Aliás, por uma questão de ética, alguns desses heróis deveriam sair do palco. Ademais, o final parece terrível: a corrupção vence a honestidade. Sérgio Buarque de Holanda escreveu: “Em terra onde todos são barões, não é possível acordo coletivo durável, a não ser por uma força exterior respeitável e temida”. Quem seria essa força exterior? Os marcianos? Os exércitos da CUT? As Forças Armadas? Uma legião de anjos do Senhor? Ora, tal força só pode ser a lei que, sendo expressão da honra de um país, não pode deixar que o roubo da coisa pública e a virtual destruição da gestão do bem comum transite de crime a ser debelado, em valor a ser premiado. O bandido não pode ser reinterpretado como mocinho e nós, batalhadores do cotidiano, não podemos abandonar o real do feijão com arroz que, sem nenhuma interpretação, tem que ser comido”(http://oglobo.globo.com/opiniao/so-existe-interpretacao-2-17375509#ixzz3kaQ3yaxL).

Como funciona nosso cérebro (sobretudo diante das crises individuais ou coletivas – v. Pedro Bermejo, Quiero tu voto, p. 31 e ss.):
1ª etapa: Negação do problema (defesa psicológica):
Sobre inflação, Dilma disse dia 28/7/14 (entrevista à Folha): “O presidente Lula pegou taxa de inflação extremamente alta, de 12,5%, do FHC. Acho que usam dois pesos e duas medidas para julgar meu governo. Ela [a inflação] não está descontrolada”, disse. “Ela está no teto da banda [o centro da meta é de 4,5%; o teto da banda, de 6,5%]. Vamos ficar nesse teto da banda.” (http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/07/1492376-dilma-nega-crise-economicaegarante-inflacao-dentro-da-meta-em-2014.shtml). Uma coisa é o desejado, outra é o desejável. Quanto mais negamos os problemas, mais adiamos a solução.
2ª etapa: Busca de culpados (negação da culpa):
Para chegar onde chegamos na crise econômica, o que falhou? “Foi a falta do reconhecimento imediato e explícito de Dilma que subestimara, sistematicamente, as dificuldades causadas pelo enorme voluntarismo da sua administração e que, por isso, iria mudar” (Delfim Netto, Folha 2/9/15: A2).
3ª etapa: Medidas desesperadas (emoção e agravamento da crise):
“A única ocasião em que alguém pode descontrolar-se é quando o faz de propósito” (Richard Nixon).
4ª etapa: Aceitação do problema (razão):
“Na vida, quando a gente comete erro a gente paga pelo erro. Temos defeitos, mas ninguém fez mais do que nós fizemos por este país” (Luiz Inácio Lula da Silva,Estadão 2/9/15: A7).
5ª etapa: Busca de soluções racionais, se possíveis (lucidez):
“Apesar de certos arroubos e de ênfases descabidas, a situação, de fato, não guarda pouca dramaticidade e é ocioso procurar saídas rápidas e aparentemente fáceis. No governo e até na oposição é difícil encontrar atores capazes de conectar o tempo da crise contingente com perspectivas efetivas de um futuro melhor, mesmo que isso seja projetado para um tempo longo. No geral, predominam retóricas unilaterais e imediatistas, sem nenhum viço, visando a defender de olhos fechados um dos lados” (Alberto Aggio, Estadão 30/8/15: A2).
Luiz Flávio Gomes - Jurista e professor.

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