domingo, julho 29, 2012

Nação petista chega ao juízo final do mensalão acometida de um inusitado apagão da memória


A cinco dias do início do julgamento da ação penal do mensalão, o presidente da nação petista, Rui Falcão, levou ao portal do PT um vídeo. A se acreditar na mensagem contida na peça, o que a imprensa, o Ministério Público e a Polícia Federal flagraram foi um escândalo virtuoso, uma corrupção para o bem.
Na versão de Falcão, “não houve o chamado mensalão”. O que houve foram “repasses e recursos destinados a pagar despesas de campanha, de diretórios do PT e de partidos aliados”. Doações altruistas, que “não guardavam relação com apoio a projetos do governo.”
Não houve tampouco, “da parte dos petistas denunciados, qualquer utilização de recursos públicos, nem de recursos ilícitos”. O que houve “foram empréstimos contraídos junto a bancos privados, que já foram quitados pelo partido.” Convém repetir para que fique bem claro:
Os diretórios petistas e de agremiações companheiras cometeram a imprudência de gastar acima de suas possibilidades. Compadecido, o PT foi à rede bancária. Endividou-se. Promoveu uma distribuição de dinheiro. E, tomado de inaudita generosidade, não cobrou nada em troca.
Fora disso, declarou Falcão, tudo não passa de um clamor “pelo linchamento moral, pela condenação política dos companheiros.” Algo que o STF, num “julgamento justo”, não haverá de permitir. O mandarim do petismo expressou sua crença na “inocência” dos “militantes denunciados”. Solidarizou-se com “todos eles”.
Um dos capítulos do processo do mensalão registra o depoimento prestado por Duda Mendonça à CPI dos Correios. Coisa de agosto de 2005. Personagem decisivo na eleição de Lula, Duda contou que fizera cinco campanhas para o PT em 2002, incluindo a presidencial. Em valores da época, cobrara R$ 25 milhões.
Desse total, R$ 10,5 milhões lhe foram pagos nas Bahamas, paraíso fiscal do Caribe. Sem nota fiscal. “O dinheiro era claramente de caixa dois”, revelou Duda. “Nós sabíamos, mas não tínhamos outra opção. Queríamos receber.” Abriu a conta no estrangeiro, segundo disse, sob orientação de Marcos Valério.
Duda apresentou comprovantes de depósitos. Compulsando-os, os membros da CPI e, posteriormente, os investigadores da PF verificaram que o dinheiro repassado ao marqueteiro do PT viera de outras contas abertas no exterior (EUA, Portugal, e ilhas Cayman, por exemplo).
Normalmente, envia-se numerário de caixa dois para fora do país com o propósito de lavar dinheiro sujo longe dos radares da Receita Federal. Com o PT, deu-se o inverso. Como disse Falcão, “não há recursos públicos nem recursos ilícitos” nas valerianas arcas, só “empréstimos contraídos junto a bancos privados” –o Banco Rural e o BMG.
Assim, numa operação nunca antes vista na história do país, o PT enviou clandestinamente ao exterior dinheiro limpo, obtido licitamente em duas casas bancárias nacionais. Falcão não disse, mas decerto a inovação se deveu à imaturidade da legenda. Habituada à penúria dos tempos de oposição, não tinha traquejo para lidar com a fartura do poder recém-conquistado. Por descuido, passeou involuntariamente pelo Código Penal, cometendo os crimes de formação de quadrilha, evasão de divisas e sonegação fiscal.
O estrépito das revelações de Duda causaram constrangimentos ao Lula da época. Durante três meses, o então presidente da República limitara-se a repetir que “não sabia” da existência do mensalão. No 91o dia, sob os efeitos do depoimento de seu marqueteiro, sentiu a necessidade de dizer algo mais.
Em cadeia (ops!) nacional de rádio e tevê, Lula declarou aos brasileiros, na abertura de uma reunião ministerial: “Quero dizer a vocês, com toda a franqueza, eu me sinto traído. Traído por práticas inaceitáveis das quais nunca tive conhecimento. Estou indignado pelas revelações que aparecem a cada dia e que chocam o país. O PT foi criado justamente para fortalecer a ética na política.”
“O PT tem que pedir desculpas. O governo, onde errou, tem que pedir desculpas. Porque o povo brasileiro [...] não pode, em momento algum, estar satisfeito com a situação que o nosso país está vivendo”, acrescentou Lula.
Nessa resposta tardia ao escândalo que o rodeava, Lula dirigiu-se ao “povo brasileiro” com respeito. Leu um texto que expressava a indignação de um líder político preoucpado com a própria biografia. Esforçou-se para restaurar a compostura que se esperava de seu governo. Ou seja, Lula estava completamente fora de si.
Considerando-se as palavras ditas agora pelo companheiro Falcão, Lula julgou-se “traído por práticas inaceitáveis” que jamais ocorreram. Exigiu que o PT pedisse “desculpas” por ter sido generoso consigo mesmo e, sobretudo, com os aliados. Coisa de maluco. Por sorte, Lula já recobrou o juízo. Hoje, também se refere ao mensalão ora como “farsa” ora como “tentativa de golpe” da oposição.
Ao lado do capítulo que fala do guichê por onde escoaram as verbas, há nos autos do mensalão o trecho que trata do provimento dos recursos. Nesse pedaço do processo, Delúbio Soares, o ex-tesoureiro das arcas petistas, refere-se aos recursos providenciados pelo coletor Marcos Valério como “verbas não contabilizadas.”
Normalmente, os partidos deixam de contabilizar recursos obtidos por baixo da mesa. De novo, deu-se o inverso com o PT. Delúbio absteve-se de escriturar a verba que Falcão diz ter sido amealhada em transações bancárias legais. Na ocasião, o PT expulsou Delúbio dos seus quadros.
Hoje, já devidamente refiliado, o ex-tesoureiro recebe do partido a merecida reabilitação. Falcão dedica-lhe toda a “confiança” e “solidariedade” que um dirigente partidário pode devotar a um militante de bem. Um sujeito que, por descuido ou desorientação, tratou como dinheiro sujo uma verba que era limpa. Logo se vê que Delúbio não ouviu os altos dirigentes do PT de então. Consultados, José Genoíno e José Dirceu teriam gritado: “O que é isso, companheiro?”.
Não resta à platéia senão dar crédito a Falcão, refutar a tentativa de “linchamento moral” e rezar para que o STF ofereça aos inocentes um “julgamento justo”. Melhor aceitar a perfídia da imprensa, da PF e da Procuradoria do que ter que acreditar que todas as provas recolhidas, todas as evidências colecionadas e tudo o que está na cara não passam de uma conspiração da lei das probabilidades contra um partido de gente limpinha.
Embora não ornem com os autos, as fábulas da “farsa”, do “golpe” e do complô tornaram-se convenientes. Do contrário, o eleitor teria de se penitenciar por ter conduzido ao poder uma legenda que, após defender os fracos durante anos, aliou-se a Jeffersons, Valdemares e outros azares antes de ser acometida por um inusitado apagão da memória.

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