quarta-feira, maio 04, 2016

Ainda sobre Bolsonaro: imunidade material x apologia à tortura

Ainda sobre Bolsonaro imunidade material x apologia tortura
Por Fernanda Ravazzano
O dia 17 de abril de 2016 foi marcado não apenas pela votação histórica da Câmara dos Deputados acerca da admissibilidade do julgamento da ação de impeachment contra a Presidente da República, mas, sobretudo, pelo baixo nível dos integrantes do nosso congresso que, salvo raras exceções, nos brindaram com um show de horrores ao sequer citarem, a favor ou contra o impedimento da Presidente, qualquer argumento jurídico.
Pior, fomos bombardeados com assertivas absurdas, homenagens descabidas, piadas de mau gosto e, enfim, ouvimos, de forma estarrecida, em plena democracia, a apologia a um militar, responsável pela tortura e morte de brasileiros, durante o regime de exceção. A afirmação chocante foi da autoria do deputado do PSC Jair Bolsonaro, que em seu discurso afirmou:
“Nesse dia de glória para o povo brasileiro tem um nome que entrará para a história nessa data, pela forma como conduziu os trabalhos nessa casa. Parabéns, presidente Eduardo Cunha. Perderam em 1964. Perderam agora em 2016. Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula que o PT nunca teve, contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo, pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo Exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas, por um Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é sim.”
Em 27 de abril do corrente ano, a União Brasileira dos Escritores (UBE) apresentou ao Tribunal Penal Internacional pedido de instauração de investigação contra o deputado por crime contra a humanidade, em razão da apologia à tortura. Mas, seria de fato cabível tal pedido? Jair Bolsonaro estaria abarcado pela imunidade material ao proferir seu voto e opinião, ainda que exaltando um torturador? Ou neste caso houve excesso e a imunidade parlamentar não estaria presente? O fato do Coronel Ustra, assim como os demais torturadores, terem sido anistiados pelo governo brasileiro afastaria a materialidade do suposto crime praticado pelo deputado? Qual a competência do Tribunal Penal Internacional para este caso? Comecemos a análise.

IMUNIDADE PARLAMENTAR

Quanto à imunidade parlamentar material, prevista na Constituição Federal no artigo 53, se tem por finalidade a proteção do deputado ou senador por suas palavras, votos e opiniões, a fim de que não seja responsabilizado civil e penalmente por seus pensamentos. Ocorre que o próprio artigo 53 determina que haja uma relação entre a manifestação e o mandato e o artigo 55 trata do limite de tal imunidade, não alcançando o parlamentar quando este quebra o decoro da casa.
A apologia a crime – e neste caso, o delito em comento é a tortura, tratada na lei 9455/97 – é tipificada no Brasil, está prevista no artigo 287 do código penal, tendo, por conseguinte, o deputado, em tese, praticado fato típico.
A questão central é se tal manifestação estaria ou não abraçada pela imunidade material. A meu ver, houve excesso por parte do deputado, com consequente postura que ofende o decoro parlamentar, que será ainda debatida pelo conselho de ética da Câmara dos Deputados. Havendo quebra de decoro, com possível perda do mandato inclusive, o político responderá civil e criminalmente.
Mas seria possível processá-lo sem a manifestação do conselho de ética? Com certeza e o próprio Supremo Tribunal Federal já decidiu nesse sentido, na questão de ordem no inquérito INQ-QO 503 RJ:
Ementa: 1. AÇÃO PENAL ORIGINARIA: RE-RATIFICAÇÃO DA DENUNCIA: CASO DE ADMISSIBILIDADE. E DE ADMITIR-SE A RE-RATIFICAÇÃO DA DENUNCIA, NO PROCESSO DA AÇÃO PENAL DA COMPETÊNCIA ORIGINARIA, QUE SE FAZ ANTES DA DECISÃO PLENARIA SOBRE O SEU RECEBIMENTO E APENAS PARA CORRIGIR ERROMATERIAL NA TRANSCRIÇÃO DE UMA DAS FRASES TIDAS POR OFENSIVAS E IMPUTADAS AO DENUNCIADO. 2. IMUNIDADEPARLAMENTARMATERIAL: NÃO INCIDENCIA. AINDA QUANDO SE ADMITA, EM CASOS EXCEPCIONAIS, QUE O CONGRESSISTA, EMBORA LICENCIADO, CONTINUE PROJETADO PELAIMUNIDADE MATERIAL CONTRA A INCRIMINAÇÃO DE DECLARAÇÕES RELATIVAS AO EXERCÍCIO DO MANDATO, A GARANTIA NÃO EXCLUI A CRIMINALIDADE DE OFENSAS A TERCEIRO, EM ATOS DE PROPAGANDA ELEITORAL, FORA DO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO E SEM CONEXAO COM ELA( CF. INQ 390, 27.9.89, PERTENCE, RTJ 129/970). 3. CRIME CONTRA A HONRA E DISCUSSÃO POLÍTICO-ELEITORAL: LIMITES DA TOLERANCIA. AS DISCUSSÕES POLITICAS, PARTICULARMENTE AS QUE SE TRAVAM NO CALOR DE CAMPANHAS ELEITORAIS RENHIDAS, SÃO INSEPARAVEIS DA NECESSIDADE DE EMISSAO DE JUIZOS, NECESSARIAMENTE SUBJETIVOS, SOBRE QUALIDADES E DEFEITOS DOS HOMENS PUBLICOS NELAS DIRETAMENTE ENVOLVIDOS, IMPONDO CRITÉRIO DE ESPECIAL TOLERANCIA NA SUA VALORAÇÃO PENAL, DE MODO A NÃO TOLHER A LIBERDADE DE CRITICA, QUE OS DEVE PROTEGER; MAS A TOLERANCIA HÁ DE SER MENOR, QUANDO, AINDA QUE SITUADO NO CAMPO DA VIDA PÚBLICA OU DA VIDA PRIVADA DE RELEVÂNCIA PÚBLICA DO MILITANTE POLÍTICO, O LIBELO DO ADVERSARIO ULTRAPASSA A LINHA DOS JUIZOS DESPRIMOROSOS PARA A IMPUTAÇÃO DE FATOS MAIS OU MENOS CONCRETOS, SOBRETUDO, SE INVADEM OU TANGENCIAM A ESFERA DA CRIMINALIDADE: CONSEQUENTE VIABILIDADE DA DENUNCIA, NO CASO CONCRETO, QUE SE RECEBE.
Assim sendo, flagrante o excesso na manifestação no caso em comento, ainda mais grave que mera ofensa à honra de terceiro, pois se tratou de apologia a crime, mais especificamente, apologia à tortura, não tendo o que se falar em opinião, palavras ou votos com conexão ao mandato desempenhado, ainda que proferida na votação de pedido de impeachment. Nada justifica a postura do deputado. Não há que se falar em mera manifestação da opinião e imunidade parlamentar. Mas sabemos que o Conselho de Ética da Câmara dos Deputados é quem dará o tom na interpretação de tal fato, declarando se houve ou não quebra do decoro parlamentar.
Ultrapassada esta primeira questão, avançamos no possível cabimento do pedido de investigação junto ao TPI:
ANÁLISE DO POSSÍVEL CABIMENTO DO PEDIDO E A ANISTIA BRASILEIRA
Primeiramente, cumpre citar a defesa feita pelo próprio Deputado Jair Bolsonaro sobre a acusação que lhe é dirigida:
Em nenhum momento foi feita homenagem a qualquer torturador, considerando a inexistência de sentença condenatória atestando que o Coronel Ustra tenha praticado crime de tortura. O que existe são apenas acusações de pessoas que não devem ser levadas em consideração, pelo fato de terem interesse em receber indenizações por motivação política. O Coronel Ustra foi um bravo que lutou para evitar que o Brasil fosse comunizado e se transformasse numa imensa Cuba. Estranha também que a UBE não tenha a mesma preocupação com os parlamentares que homenagearam Marighella, Lamarca, Prestes e outros criminosos.
Em verdade, o Coronel Ustra foi condenado em 2008 na 23ª Vara Cível de São Paulo na primeira instância em ação declaratória de sequestro e tortura ocorrida durante o regime militar (1964- 1985), mas se tratou de condenação na esfera cível, mesmo porque foi concedida anistia aos crimes de tortura praticados durante o regime militar.
Da declaração de extinção da punibilidade teremos apologia a fato extinto, tanto em seu efeito principal, quanto acessórios. Assim sendo, a meu ver, por mais absurda e repugnante que tenha sido a declaração, compondo o show de horrores que presenciamos no dia 17/04/2016, não haveria crime.
Tampouco caberia representação junto ao TPI para que se investigue o caso por três razões: primeiramente, por ser a competência do Tribunal complementar, somente atuando quando a justiça brasileira não se mostrar capaz de investigar o ato ou não demonstrar vontade de fazê-lo, ou demorar a investigação mais tempo que o razoável ou ainda quando não houver competência ou imparcialidade para conduzir o procedimento, como previsto no artigo 17 do Estatuto de Roma. Não há, portanto, preenchimento deste requisito.
Em segundo lugar, não haveria também o preenchimento da tipicidade material, pois o Tribunal Penal Internacional é competente para processar e julgar o crime de tortura (artigo 7º), na forma comissiva ou omissiva. Entende-se que a apologia à tortura seria também uma forma de praticá-la; não há, entretanto, tal previsão no estatuto.
Por fim o TPI só é competente para processar e julgar crimes graves (art. 17 alínea d) que interessem à comunidade internacional, não estando abrangido o caso em comento, tendo em vista que a apologia à tortura não possui, decerto, a mesma gravidade que o ato em si.
Por mais abjeção e revolta que a postura do deputado tenha despertado, não vejo como prosperar o pedido de investigação junto ao TPI, mas no Conselho de Ética…

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