Daniel Broeto Maia Nunes[1]
Filipe Maia Broeto Nunes[2]
O presente artigo tem por objetivo explicar, sem paixões políticas ou ideológicas, determinado fato [rumoroso], envolvendo os deputados Jean Wyllys e Jair Bolsonaro, que ganhou certa repercussão na mídia. Ressalte-se, de início, que a pretensão do texto é tão somente a de analisar, à luz da dogmática penal, a conduta levada a efeito pelos sujeitos envolvidos no fatídico evento, sem, contudo, adentrar-se às minúcias do caso concreto, para evitar, justamente, qualquer possível represália despida de quaisquer fundamentos jurídicos válidos[3].
Pois bem. Numa análise perfunctória, tendo por base os vídeos disponibilizados no sitio virtual do YouTube[4], verificou-se que na emblemática reunião, realizada na Câmara dos Deputados – Casa do Povo –, cujo objetivo precípuo era o proceder à votação da admissibilidade, ou não, do processo de impedimento da Presidente Dilma Rousseff, o Deputado Jean Wyllys, com os ânimos “à flor da pele” – o que é totalmente compreensível, haja vista o embate de ideias que ali se deu –, ultrapassando os limites da razoabilidade, num gesto de ignorância e falta de educação[5], cuspiu no Deputado Jair Bolsonaro, parlamentar este de ideologia adversa à sua, visando acertar-lhe o rosto.
Este é, portanto, o caso a ser estudado, e sobre o qual se desenvolverá a análise. De se destacar, contudo, nesta oportunidade, que não se acusará o Deputado Jean Wyllys, tampouco se defenderá o (im) popular “Mito” Bolsonaro. Ao revés, o presente artigo tem por escopo uma abordagem técnico-jurídica, despida, frise-se, de quaisquer paixões ideológicas.
Posta a situação, indaga-se: Haverá, in casu, o acobertamento de tal conduta [cuspir] pela imunidade parlamentar material ou freedom of speech? Vale dizer, estará o gesto de Jean situado nas hipóteses de opiniões, palavras e/ou votos?
Para que se possa responder tal indagação, faz-se necessário, primeiro, compreender o que vem a ser, de fato, a imunidade parlamentar material ou freedom of speech. Advirta-se, de plano, que, consoante Rogério Sanches Cunha, “A natureza jurídica da imunidade absoluta é questão controvertida. ”[6].
O citado doutrinador, em seu Manual de Direito Penal, faz menção a diversos juristas de renome, que tentam explicar a natureza jurídica do instituto. A saber:
(A) Pontes de Miranda, Nélson Hungria e José Afonso da Silva entendem ser causa excludente de crime;(B) Basileu Garcia considera a imunidade absoluta causa que se opõe à formação do crime;(C) Aníbal Bruno considera-a causa pessoal (funcional) de isenção de pena;(D) Magalhães Noronha entende ser causa de irresponsabilidade;(E) José Frederico Marques, por sua vez, ensina tratar-se de causa de incapacidade pessoal penal por razões políticas;(F) por fim, para Luiz Flávio Gomes (seguido pelo STF), a imunidade parlamentar absoluta torna o fato atípico.[7]
Com efeito, deixando-se de lado a natureza jurídica da imunidade parlamentar material, o que importa mesmo é que ela visa proporcionar ao parlamentar, no exercício de suas funções, mais independência e liberdade ao expressar e defender opiniões e valores que entenda justos. Neste sentido, reforçando o que se disse, preleciona, com maestria, Uadi Lammêgo Bulos:
Imunidade material (substancial ou de conteúdo) – também chamada de inviolabilidade, visa garantir a liberdade de opinião, palavras e votos do membro do Poder Legislativo...Serve para que os parlamentares, no exercício do mandato legislativo (prática in officio) ou em razão dele (práticapropter officium), opinem, discursem e votem com inteira liberdade, sem pressões nem constrangimentos[8].
Constante no texto maior, com destaque no art. 53, caput, daCarta Política, pode-se observar que: “Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”.
Assim, analisando o sentido literal das palavras e de acordo com o Dicionário Aurélio, tem-se que opinião é o “Modo de ver, pensar, deliberar”[9]; ao passo que as palavras são “fonemas ou grupo de fonemas, com uma significação; termo, vocábulo”[10]; por fim, o voto, em sua amplitude conceitual, poderia caracterizar-se como “ sm. 1. Promessa solene com que nos obrigamos para com Deus. 2. Promessa solene; juramento. 3. Súplica à divindade. 4. Desejo ardente.5. Modo de expressar a vontade num ato eleitoral. 6. Cédula”[11].
Nesta senda, seguindo a vertente legalista e fazendo-se uma interpretação literal, o ato de cuspir, que, segundo o Aurélio, traduz-se em “1. Lançar da boca cuspo ou outra substancia liquida. 2. Expelir pela boca.. 3. Laçar saliva”[12], não estaria abarcado pela imunidade parlamentar material, pois cuspe não é palavra, nem opinião e muito menos voto. Em verdade, essa conduta – que produz uma modificação material no mundo fenomênico – parece amolda-se com mais precisão a uma infração penal, mais precisamente à figura da injúria real, como se exporá com detalhes logo à frente.
Como é cediço, em se tratando de crimes contra a honra, há três tipos penais que abarcam as mais diversas situações, quais sejam: (a) calúnia - como a imputação de fato criminoso sabidamente falso, que afeta a honra objetiva da vítima; (b) difamação - que, por sua vez, se traduziria na imputação de fato desonroso à reputação [pouco importando se verdadeiro ou falso], ferindo, igualmente, a honra objetiva; e, por fim, (c) a injúria - que, a seu turno, se consubstancia na ofensa à dignidade ou decoro do ofendido, e que, por isso mesmo, ao invés de macular a honra objetiva [vale dizer, como a pessoa é vista na sociedade], mancha a honra subjetiva, ou seja, o que a pessoa pensa de si mesma.
Vale observar, contudo, que Luiz Flavio Gomes, ao comentar o fato objeto do presente artigo, ponderou que “Em regra uma cusparada significa injúria (ofensa à honra subjetiva de uma pessoa). Não se trata de difamação porque não envolve a narrativa de fato desabonador. Não é calúnia porque não descreve um delito”[13].
Todavia, não obstante a importância do referido autor, pelo menos no que tange à classificação da conduta do parlamentar Jean Wyllys, parece mais acertado enquadrá-la como injúria real. Isto porque, como visto acima, o ato de cuspir, ainda que interpretado de forma ampla e genérica, não parece estar englobado na imunidade material, haja vista que cuspir não é falar, nem opinar, tampouco votar. Ou seja, a atitude do Deputado Jean não se traduz em opinião, palavras e/ou votos.
Como sustentado, há mais coerência falar-se em injúria real. Isto é assim, visto que, como preleciona Rogério Greco, em seu Curso de Direito Penal:
Na injúria real, a violência ou as vias de fato são utilizadas não com a finalidade precípua de ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem, mas, sim, no sentido dehumilhar, desprezar, ridicularizar a vítima, atingindo-a em sua honra objetiva.Como regra, a injúria real cria na vítima uma sensação de impotência e inferioridade diante do agente agressor[14].
Destarte, o parlamentar Jean, ao praticar tal conduta [cuspir], teve, nitidamente, o dolo de desprezar, humilhar, escarnecer, conspurcar a pessoa de Jair Bolsonaro. Bem assim, afigura-se possível [e viável] a responsabilização penal do Deputado, caso a vítima, Jair Bolsonaro, decida representá-lo, haja vista que, conforme exposto à exaustão, a imunidade material não seria capaz de abranger este ato [conduta positiva, geradora de resultado material], assim como não englobaria, a título exemplificativo, um tapa na face.
Veja-se, portanto, que as condutas de xingar, falar, gritar, gesticular, escrever, etc., estariam facilmente imunizadas e, adotando-se, por exemplo, a corrente defendida por Pontes de Miranda, Nélson Hungria e José Afonso da Silva, sequer haveria de se falar em crime, porquanto referida imunidade/inviolabilidade é causa excludente do delito.
Por outro lado, todavia, o mesmo não se dá com o tapa, soco, puxão de cabelo e, igualmente, com o cuspe. Destarte, em arremate, forçoso concluir que, mesmo na seara penal, é encontrada tipificação para conduta do Deputado Jean Wyllys. Evidencie-se, outrossim, que, afora o âmbito criminal, espaço há também para a cassação do mandato por quebra de decoro parlamentar. Afinal, como bem abordado por George Resende Rumiatto de Lima Santos, em artigo publicado na Revista Consultor Jurídico – Conjur,
os parlamentares possuem imunidade material para que exerçam seu mandato livres de pressões externas. Todavia, suas opiniões, palavras e votos têm o conteúdo limitado pelas exigências de decoro parlamentar, nos termos do Regimento Interno. A inviolabilidade do artigo 53 daConstituição não impede que a Câmara dos Deputados ou o Senado Federal decida, interna corporis, sobre a sanção ao parlamentar, observado o § 2º do artigo 55 da Lei Maior, nas hipóteses em que a manifestação se mostrar incompatível com o decoro parlamentar[15].
A toda evidencia, por qualquer ângulo que se olhe, não há guarida ao comportamento levado a efeito pelo Deputado Federal Jean Wyllys. Não obstante a imunidade, espera-se que haja, por parte de todos, ética, decoro e dignidade. Erram todos ao acusarem-se reciprocamente de ladrões, estupradores, bandidos, etc. É possível, e esperado, que o debate seja feito de forma limpa. Para tanto, basta que se elejam deputados limpos, probos e, sobretudo, educados. Afinal, discordar não precisa ser, necessariamente, desrespeitar.
[1] Acadêmico de Direito da Universidade de Cuiabá e Estagiário no Escritório Azevedo Borges Advogados.
[2] Acadêmico de Direito da Universidade de Cuiabá e Estagiário no Escritório Valber Melo Advogados Associados (Atualmente); Estagiário do Ministério Público Federal, aprovado em 1º lugar, 2015.2; Estagiário do Ministério Público do Estado do Mato Grosso, aprovado em 1º lugar, 2015.1; Estagiário da Defensoria Pública do Estado do Ceará, 2014.2;
[3] Toda crítica jurídica, que venha a acrescentar ao debate, é muito bem-vinda.
[4] Acesso em 21/04/2016.
[5] Tal gesto, em qualquer cenário que seja, é deveras desrespeitoso, quanto mais num parlamento. Quanto a isso, portanto, não há argumentos defensáveis. A atitude foi, para além de grosseira, nojenta.
[6] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal, 2ª ed. Salvador – Bahia: JusPODIVM, 2014. P.130.
[7] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal, 2ª ed. Salvador – Bahia: jusPDIVM, 2014. P.128.
[8] BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito constitucional, 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. P.1093
[9] Mini Aurélio século XXl, 4ª ed Revisada e Ampliada, Rio de janeiro; Editora Nova Fronteira, 2001.
[10] Idem.
[11] Idem.
[12] Mini Aurélio século XXl, 4ª ed Revisada e Ampliada, Rio de janeiro; Editora Nova Fronteira, 2001.
[14] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal Parte Especial, vol. II. 12ª ed, Niterói – Rio de Janeiro, Impetus 2015. P.463.
[15] http://www.conjur.com.br/2016-abr-18/george-rumiatto-imunidade-parlamentar-limites-decoro. Acesso em 21/04/2016.
Nenhum comentário:
Postar um comentário