Por Fernanda Ravazzano
Tramitam na Câmara dos deputados dois projetos que repercutem diretamente nas prisões cautelares no Brasil, mas com finalidades diametralmente opostas: o projeto 4850/16 – que traz as 10 medidas de combate à corrupção (que, como já visto aqui, excede, e muito o debate sobre a repressão à corrupção) e oPL 4372/2016, que tem por objetivo restringir a admissibilidade da delação premiada, notadamente quando o sujeito delator se encontra preso.
Interessa-nos analisar no “pacote anticorrupção” a nova modalidade de prisão cautelar proposta pelo MPF, a prisão para “assegurar a devolução do dinheiro desviado” (medida 09), em total arrepio à Constituição Federal.
Estamos vivenciando um momento histórico e político delicado, em que a sanha punitivista orienta os discursos e pior, as propostas legislativas… ser contrário aos projetos que acompanham o pacote “anticorrupção” do Ministério Público tornou-se sinônimo de defensor da corrupção; se buscamos a observância da Constituição quanto aos limites da delação – em verdade sua própria existência -, somos taxados de defensores da impunidade.
Os discursos aflorados devem ser revistos, em especial quando nos deparamos com formas de cerceamento da liberdade.
A PRISÃO PARA DELAÇÃO
Em recente audiência pública na Câmara dos Deputados, o Procurador da República Deltan Dallagnol, ao debater o PL 4850/16, reforçou o seu entendimento quanto à importância da obtenção de delações com sujeitos presos:
Foram exatamente esses institutos [acordos de delação premiada e de leniência] que nos permitiram chegar aonde chegamos: uma expansão exponencial da investigação, descobrindo novos fatos relacionados à corrupção, processando outras pessoas, recuperando R$ 3 bilhões aos cofres públicos. É possível melhorar esses instrumentos de trabalho, mas foram úteis do modo como estão previstos hoje.
A delação premiada tornou-se o instrumento de prova mais comum utilizado pelo Ministério Público, sobretudo quando analisamos a operação lava-jato. Ocorre que o próprio instituto é alvo de críticas da doutrina e a forma como está sendo utilizado no Brasil consegue ser ainda pior que sua própria definição.
Aqui se utiliza a “prisão para delação” nova espécie de prisão cautelar, explico: prende-se o sujeito com base na famigerada “garantia da ordem pública” (que é um cheque em branco para se decretar uma prisão) ou “conveniência da instrução criminal” (conveniência de quem investiga e julga, mas não do processo penal como deveria ser) até que o sujeito delate, quando, somente então, é posto em liberdade.
E onde estão o periculum libertatis e o fumus comissi delicti? Qual o perigo que o sujeito representa à sociedade estando em liberdade? Respondem: perigo de desviar dinheiro. E o afastamento da função, quer seja pública ou privada, com o monitoramento das movimentações bancárias não seriam suficientes? Pode ser que sim, mas não é esse o foco aqui. O foco é a delação. Solto, o sujeito não estará em pânico, não sofrerá a coação psicológica exercida com a restrição da liberdade e, delatando, o fará de forma voluntária.
Sem o direito de ir e vir o indivíduo cede à pressão. Mas poderíamos questionar: e não é melhor que ele ceda e entregue todo o esquema? Respondemos com outra pergunta: e quem garante que é esse o esquema? O que distingue o atual método de obtenção de confissão e entrega dos demais supostos coautores da tortura física tradicional? O medo de permanecer preso ou ainda de acrescentarem novas acusações para aumentar o possível tempo de prisão são mecanismos que levam o sujeito a falar. Mas falar o que? A verdade, ou o que se deseja ouvir? Ninguém sabe.
O comentário do Procurador versou sobre o PL 4372/16 que tem por objetivo a proibição da obtenção da delação premiada quando o indivíduo estiver preso. O autor do projeto, o deputado Wadih Damous em sua justificativa pondera:
A medida se justifica para preservar o caráter voluntário do instituto e para evitar que a prisão cautelar seja utilizada como instrumento psicológico de pressão sobre o acusado ou indiciado o que fere a dignidade da pessoa humana, alicerce do estado democrático de direito. Da mesma forma, a alteração protege as regras processuais que tratam da prisão preventiva e evita que prisões processuais sejam decretadas sem fundamentação idônea e para atender objetos outros, alheios ao processo ou inquérito.
A delação premiada deve ser obviamente voluntária e não obtida através de tortura psicológica como ocorre, ou nossa Constituição Federal não veda a tortura, os maus-tratos e o tratamento cruel ou degradante? Com razão o jornalista Pedro Breier:
Trata-se do episódio mais recente a demonstrar os graves problemas da utilização da delação premiada no processo penal. A liberdade deixa de ser direito fundamental para virar objeto de barganha na negociação entre réu e procuradores. A prisão preventiva é (deveria ser) medida excepcional, a ser utilizada somente quando demonstrada a sua real e proporcional necessidade. Quando a prisão vira objeto de pressão para que o réu feche acordo de delação está sendo cometida uma ilegalidade pelos membros do Ministério Público, em tese os fiscais da lei.
Segue o jornalista chamando ainda a atenção para o uso da prisão para delação como mecanismo de manutenção do caráter seletivo do Direito Penal. Tal afirmação é feita pois, para piorar a situação, após a delação: o sujeito ou é posto em liberdade, ou simplesmente ganha uma redução da pena tão interessante que, não raro, é condenado a cumpri-la em regime domiciliar ou a cumpre no regime semiaberto, oportunidade que não é dada ao criminoso comum, só ao de colarinho branco.
Percebemos, então, a verdadeira finalidade desta “nova modalidade prisão cautelar”: a delação para recuperação de ativos! E é neste sentido que o próprio MPF no PL 4850/16 propõe a criação da “prisão preventiva para evitar a dissipação do dinheiro desviado”.
PRISÃO PREVENTIVA PARA EVITAR A DISSIPAÇÃO DO DINHEIRO DESVIADO
Que o “pacote anticorrupção” padece de uma série de problemas, inclusive de ordem ética – apesar de termos também pontos positivos – todos já sabem, mas não custa nada avançar em mais um.
Causa espanto a medida 09, que traz a seguinte redação quanto ao projeto de lei:
Art. 1º O art. 312 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 –Código de Processo Penal, passa a vigorar com a seguinte redação:“Art. 312. […] Parágrafo único. A prisão preventiva também poderá ser decretada[…] II – para permitir a identificação e a localização do produto e proveito do crime, ou seu equivalente, e assegurar sua devolução, ou para evitar que sejam utilizados para financiar a fuga ou a defesa do investigado ou acusado, quando as medidas cautelares reais forem ineficazes ou insuficientes ou enquanto estiverem sendo implementadas.”(NR)
Ora, teremos agora a prisão por dinheiro. O perigo da liberdade do acusado seria constatado com a possibilidade de não se recuperar o dinheiro, pois a pressão psicológica com o indivíduo preso garante que ele diga onde se encontram os valores!
Não podemos também descuidar de um trecho interessante: “… ou para evitar que sejam utilizados para financiar a fuga ou a defesa do investigado…”. Sim, o MPF se preocupa se o dinheiro pode vir a ser usado para a defesa do sujeito! É extremamente perigosa tal afirmação! Como será analisado concretamente se o advogado é patrocinado com dinheiro supostamente desviado?
A medida consegue violar o direito à liberdade e a defesa do acusado!
O QUE DE FATO DESEJA O MPF?
Defender as 10 medidas anticorrupção não significa ser contra a corrupção, como criticá-las não corresponde à defesa da corrupção e da impunidade.
Propor que as delações premiadas sejam mantidas quando o sujeito está preso e a criação da prisão para recuperação de valores demonstra não a intenção de “mandar prender ricos e pobres”, mas recuperar valores desviados.
Há algum demérito no MPF em lutar pela recuperação de ativos desviados, sonegados? De forma alguma! Está corretíssimo em batalhar pelo retorno de tais valores, mesmo porque o dinheiro pertence ao povo e deve ser revertido em benefício deste e a corrupção impede isso.
Usar a prisão como mecanismo de coação para obter os valores de volta é correto? De forma alguma. O MPF ao propor a prisão para recuperação de valores e externar em audiências públicas que a importância da delação premiada é a obtenção de ativos perdidos, deixa claro que o que interessa é o patrimônio e jamais podemos aceitar que o cerceamento da liberdade seja moeda de troca. Prender para arrecadar não pode jamais ser algo aceito, muito menos defendido e divulgado pelo fiscal da lei como ocorre. Que o Estado se vire para rastrear os valores indevidamente sonegados ou desviados, mas jamais defenda a prisão por dinheiro. É perigoso e indecente.
Por fim, como bem criticaram os jornalistas acima citados, a prevenção geral não pode sequer ser utilizada como discurso para sustentar tais prisões: qual recado a Justiça está passando para o cidadão comum? Se é possível sonegar milhões, como os órgãos acusadores mesmo afirmam na lava jato, basta indicar quem são os demais envolvidos e propiciar a recuperação de uma parte dos valores, que o sujeito cumprirá a pena no regime domiciliar ou semiaberto. É melhor, portanto, sonegar impostos, desviar, remeter dinheiro para o exterior do que cometer um simples crime contra o patrimônio. Lição dada.
Fonte: Canal Ciências Criminais
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