Repercutiu bastante a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) admitindo que gestores públicos municipais com contas rejeitadas somente pelos tribunais de contas possam se candidatar nas eleições de outubro próximo. De acordo com o entendimento firmado pela Corte, candidatos só podem ser barrados pela Lei da Ficha Limpa se tiverem contas reprovadas pelas câmaras municipais.
A questão jurídica chegou ao STF por meio de um recurso apresentado por um candidato a deputado estadual em 2014, do vizinho Estado do Ceará. A candidatura do recorrente foi barrada por ter ele as contas rejeitadas pelo Tribunal de Contas daquele estado no período em que foi prefeito do Município de Horizonte. Após a desaprovação, a Câmara Municipal não seguiu o parecer do TCE-CE e aprovou as contas do ex-prefeito.
A Lei da Ficha Limpa diz que as pessoas que tiverem as contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável ficam inelegíveis por oito anos, a partir da decisão. Ao entender que a competência é exclusiva da Câmara Municipal para justificar uma inelegibilidade, o STF implícita e tacitamente reconhece por antecipação a inconstitucionalidade da Lei da Ficha Limpa neste ponto específico.
O princípio da moralidade, como pilar da Ficha Limpa, é um dos princípios constitucionais inseridos no “caput” do art. 37, da vigente Constituição Federal, que, aliado aos princípios da legalidade, da impessoalidade, da publicidade e da eficiência, cristaliza-se no nosso Direito Constitucional como – no dizer do jurista Hely Lopes Meirelles – “o conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da Administração”.
Segundo ainda Meirelles, “o agente administrativo, como ser humano dotado de capacidade de atuar, deve, necessariamente, distinguir o Bem do Mal, o Honesto do Desonesto. E ao atuar, não poderá desprezar o elemento ético da sua conduta. Assim, não terá que decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo do injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas também entre o honesto e o desonesto.”
A decisão do Supremo - que não foi por unanimidade (6x5) -, antes de tudo, “premia o desonesto” e mostra que a Corte tem dúvidas sobre a questão decidida que poderá, no futuro, ter repercussão geral em todo o país. Em outro passo, muito embora fundada em argumentos jurídicos, porque partiu de uma análise da Corte Constitucional, “data venia”, vem em momento inoportuno para, salvo melhor juízo, em pleno pleito eleitoral, “desmoralizar” o princípio da moralidade pública enaltecido pela Lei da Ficha Limpa, uma conquista da sociedade contra atos dos malfeitores na condução da coisa pública.
Com a decisão, o STF ignora uma relação promíscua entre prefeitos e câmaras municipais quase que imperial no país. Os legislativos mirins nunca investigaram coisa alguma. E não seria agora o caso de torná-los julgadores de contas para tornar prefeitos inelegíveis.
A Lei da Fica Limpa, por exemplo, representa avanços significativos na legislação eleitoral, porque realçou a uma importância ímpar a vida pregressa dos candidatos. Só nas duas primeiras eleições em que foi aplicada, foram mais de 1.200 políticos condenados que não apresentavam requisitos mínimos para concorrer. Há quem diga que o Brasil nem precisaria de reforma política, mas de moralidade pública.
Assim, tem extremada consistência a indignação do conselheiro Jaylson Campelo, do Tribunal de Contas do Estado do Piauí, segundo o qual “esta decisão fere de morte a Lei da Ficha Limpa, que retira da vida pública os gestores que cometem desvios, fraudes e outras irregularidades apontadas graças a um trabalho estritamente técnico dos Tribunais de Contas”.
Quando se imagina que o Brasil caminha a passos largos para o império da moralidade na condução do erário, vem o STF com uma decisão surpreendente e após seis anos da edição da Lei Complementar nº 135, de 04 de junho de 2010 (Lei da Ficha Limpa), que estabelece casos de inelegibilidade, prazos de cassação e determina outras providências, para incluir hipóteses de inelegibilidade que visam a proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato. É lamentável, sob todos os aspectos!
A Constituição Federal elegeu como um de seus princípios fundamentais a moralidade como um todo, abrindo caminho para a superação da vergonhosa impunidade. Com a Lei da Ficha Limpa, confiava-se em uma nova ordem administrativa baseada na confiança, na boa-fé, na honradez e na probidade. O que contempla, então, o princípio da moralidade pública? A determinação jurídica da observância de preceitos éticos produzidos pela sociedade. Somente haverá zelo com a moralidade administrativa por meio da correta utilização dos instrumentos legais existentes na ordem jurídica.
A moralidade administrativa assevera que a Administração Pública e seus administradores devem atuar de acordo com os princípios éticos de lealdade, de boa-fé, de não corrupção e com absoluta probidade. Pela moralidade administrativa não bastará o ato ser legal, mas deve ser moral. Isso porque a imoralidade atenta contra a legalidade. Em outras palavras, o princípio da legalidade não sobreviverá no mundo jurídico sem o de moralidade.
Mesmo sendo constitucional atribuir à Câmara Municipal uma última análise sobre contas rejeitadas pelos tribunais, fica muito difícil combater a corrupção no Brasil. A propósito, como o Congresso Nacional não apreciou as contas de Dilma Rousseff, não seria, então, o momento para o STF travar o impeachment? Fica a indagação! Isso porque a regra que se aplica à Câmara Municipal, para o prefeito, é a mesma que se aplica à Assembléia Legislativa, para o governador, e ao Congresso Nacional, para o presidente da República.
Ronald Dworkin, célebre filósofo do Direito norte-americano, conhecido por suas contribuições para a Filosofia do Direito e para a Filosofia Política, classifica as normas em duas espécies: regras e princípios. Regras orientam-se por critérios; princípios, pelo legal e pelo moral. Regras são normas que exigem, proíbem ou permitem; princípios são considerados como as “bases fundamentais e estruturais” de um sistema legal-constitucional. O Supremo foi longe e decepcionou.
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